Reflexões interinas sobre a conjuntura brasileira

Reflexões interinas sobre a conjuntura brasileira

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Fotos: Agência Brasil

Três meses após ser votado na Câmara o prosseguimento do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, ter sido ela afastada e assumido interinamente o vice-presidente, Michel Temer, o Brasil parece suspenso no ar, quase paralisado. O grupo do presidente, mesmo antes de votado no Senado o impeachment total de Rousseff, reformulou totalmente a equipe ministerial, com bastante consenso no PMDB, loteando cargos com seus próceres e em particular com o centrão conservador e trazendo para o governo os próprios PSBD e DEM, derrotados na eleição presidencial de 2014. Contudo, sem ter ainda resolvido inteiramente a questão do impeachment – improvável de ser revertido no Senado, mas cuja situação ainda inspira cuidados – e frente a eleições municipais em que quer garantir a vitória de sua base, sem poder arriscar votações polêmicas no Congresso, o governo pouco se move.

Assim, o corte de gastos públicos prometido vem se realizando em poucas áreas (como a da Ciência), o provável aumento de impostos não se materializou e as isenções fiscais concedidas por Rousseff, que são o que de fato desequilibrou o orçamento da União, seguem vigentes. Apesar de movimentos autoritários no Congresso, de flertes na educação, barbaridades ditas sobre a saúde e anúncios quanto ao fim da preeminência da Petrobras na exploração do pré-sal, os principais projetos prometidos em particular ao empresariado por ocasião do golpe parlamentar-midiático não foram ainda deslanchados, se bem José Serra, como novo chanceler, já conseguir fazer estragos na política externa brasileira. É possível que a caixa de maldades seja finalmente aberta tão logo aqueles dois eventos se realizem, dando início à concretização do famigerado documento Ponte para o futuro. Certa de todo modo é a nova rodada de privatizações das quais o BNDES será o grande protagonista.

Trata-se em primeiro lugar da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 31/2016, que amplia a Desvinculação de Receitas da União (DRU), liberando recursos da Saúde e da Educação para outros fins, em particular para a realização de superávit primário, e que, aprovada, será retroativa a 1º. de janeiro de 2016 (proposta na verdade por Rousseff). Não foi ainda votada no Senado, embora tenha sido aprovada em segundo turno na Câmara. Em seguida vem a PEC que limita a variação dos gastos federais (a ser replicada nos estados) à inflação do ano anterior e não mais segundo a arrecadação. Enfim, promete-se uma reforma da Previdência que aumentará o prazo de contribuição e a idade mínima para a aposentadoria, bem como a desvinculará do salário mínimo.

São propostas duras e que, no mínimo, paralisam os difíceis avanços na educação e na construção da seguridade social no Brasil (falar de estado do bem estar social seria certamente exagero), bem como em outras áreas, como a da Ciência e da Tecnologia, que em particular entre nós, dependem fundamentalmente do Estado. Por outro lado, Temer, tentando ganhar alguma popularidade (a sua é baixa como a de Rousseff, ainda que a imprensa tente promovê-lo), reajustou significativamente os valores do programa Bolsa Família e cumpriu os acordos de reajuste que a presidenta afastada havia feito com setores do funcionalismo.

A situação política do governo Temer parece de todo modo ainda volátil. As gravações divulgadas de Sérgio Machado, operador do PMDB, implicando os principais próceres do partido logo ao início de seu governo, deixaram uma imagem péssima e serviram de aviso aos diversos acusados pela operação Lava-Jato de que é melhor não tentar bloquear suas ações. O afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara, em movimento tardio do STF, a derrota parcial do candidato do governo e de Cunha para a presidência-tampão da Câmara (embora a eleição de Rodrigo Maia, do DEM, não seja em si grande problema), reclamações e insatisfações no centrão derrotado nessa eleição e a possibilidade de que, ao ser cassado, como se demonstra quase inevitável, Cunha denuncie aqueles a quem acusa de havê-lo abandonado, inclusive o presidente interino, são problemas bastante reais. A ver como se resolvem.

Por seu turno, os que lutaram contra o impeachment não mostram força para barrar sua consecução definitiva no Senado, sequer para manter as manifestações de rua que organizaram durante sua primeira fase na Câmara. Na verdade, como muitos observaram, o ex-presidente Lula da Silva, Rousseff e o PT, a esta altura, provavelmente já nem o querem derrotar, em função do altíssimo custo que teriam para voltar a governar e do desgaste que fazê-lo na atual conjuntura ocasionaria (afinal, Henrique Meirelles e suas políticas como ministro da Economia eram o que Lula queria, e Rousseff já avisou que o manteria em seu cargo, caso voltasse à Presidência). O impeachment nada resolve para o PT, mas manter-se no governo levaria o partido a uma situação de crise possivelmente irreversível. Verdade que não para de errar, como seu desejo de apoiar a Maia já no primeiro turno na eleição para a presidência da Câmara evidenciou – escolhido ao fim o dissidente pemedebista Marcelo Castro como candidato de Lula e da agremiação, o que tampouco soou bem em suas bases, junto e sobre às quais o PSOL vai avançando.

Mas o fato é que, apesar da evidente fraqueza da esquerda, o governo Temer parece ter medo de possíveis mobilizações populares, em especial, em um cenário de crise econômica que não parou, por ora ao menos, de se aprofundar. Recua com frequência de suas decisões. A Lava-Jato tolhe também seus movimentos. E, nesse banho-maria, vai-se chegando às eleições municipais.

Estas, com ademais uma Olimpíada de permeio, serão muito rápidas e até agora imprevisíveis. A reforma política de Cunha reduziu sua extensão e prejudicou a exposição dos candidatos dos partidos menores, em geral pouco conhecidos, os quais não precisam ser chamados pelas redes de televisão a participar dos debates (o que prejudica em particular Rede e PSOL). Garante assim sobrevida aos grandes e tradicionais partidos, atrapalhando a oxigenação do sistema político. Se o STF proibiu o financiamento por empresas e abriu uma janela de possibilidade para a democracia – de resto, a única coisa de relevante em termos de reforma política para as forças progressistas –, é visível que o rumo da reforma política que começa se desenhar por cima é garantir – em particular através da cláusula de barreira – a exclusão de novas forças de debates e do parlamento. As verdadeiras legendas de aluguel e aquelas que servem a negociatas políticas – como o PSD de Kassab – não serão afetadas por essas reformas. A renovação deve assim levar um bom tempo para se processar.

Se o STF proibiu o financiamento por empresas e abriu uma janela de possibilidade para a democracia, é visível que o rumo da reforma política que começa se desenhar por cima é garantir a exclusão de novas forças de debates e do parlamento

Isso, é claro, se a população não acabar decidindo por mais uma revolta, em vista de um sistema político que resiste a abrir-se à sociedade, para isso utilizando-se de todos os expedientes, e decidiu-se por promover retrocessos sociais em meio a uma crise econômica que ainda está longe de terminar. Uma explosão social se insinuava como possível há pouco, podendo complicar a situação de Temer; vai se esboroando no horizonte, mas em si mesma seria de toda maneira incapaz de resolver os impasses das forças de esquerda e democráticas. Claro, poderia gerar uma onda mais dura de repressão, para além dos movimentos ainda limitados que setores do aparelho repressivo ou da própria representação parlamentar ensaiam neste momento (por exemplo com a CPI da Funai, capitaneada pela bancada ruralista, mas em relação à qual infelizmente há setores da esquerda que não se podem dizer inocentes). De modo geral, é um cenário mais amorfo que tende a se desenhar.

A renovação deve assim levar um bom tempo para se processar. Isso, é claro, se a população não acabar decidindo por mais uma revolta, em vista de um sistema político que resiste a abrir-se à sociedade

Seja como for, o exemplo da Turquia é eloquente: com a resistência curda e grandes e longas manifestações populares há pouco tempo, o autoritário presidente Erdogan continuou reforçando seu poder e conseguiu inclusive derrotar um golpe militar que agora lhe dá pretexto para mais autoritarismo e perseguições. Mobilizações populares por si sós não têm resultados políticos virtuosos, mesmo quando elas mesmas o são.

Será somente com um reforço das organizações populares e uma renovação geral da esquerda e da centro-esquerda que conseguiremos caminhar, no sentido de retomar reformas democratizantes e sociais, interrompendo o que se anuncia como um ciclo conduzido pela direita, embora ela própria esteja também mal das pernas (para onde se inclinará um provável novo centro na política brasileira seguirá sendo questão decisiva). A menos, é claro, que alguém creia ser possível voltar a jogar positivamente com os Temers, Jucás e Cabrais. Mas esta não se apresenta como proposta de confiável. A ver como também essa questão se resolve.

* Professor do Iesp-Uerj, pesquisador associado ao CEE-Fiocruz e autor de O Brasil entre o passado e o futuro (Rio de Janeiro: Mauad, 2015, 2ª  edição).